Medusa: violência, injustiça e a cultura do estupro
Na antiga mitologia grega, Medusa é a mais famosa das três irmãs conhecidas como as Górgonas. O mais antigo registo conhecido sobre a história da Medusa e das Górgonas pode ser encontrado na Teogonia de Hesíodo. Segundo este antigo autor, as três irmãs, Sthenno, Euryale e Medusa, eram as crianças de Phorcys e Ceto e viviam “para além do famoso Oceano, à beira do mundo, duramente à noite”. Das três, apenas a terceira é considerada mortal. Mas ela é também a mais famosa e o mito do seu falecimento nas mãos de Perseu é frequentemente recontado.
Uma mulher de beleza descomunal, que gostava de se cuidar. Assim era Medusa e, mesmo muito vaidosa, a jovem era sacerdotisa fiel de Atena, a deusa virgem. Apesar de todos os cuidados com pele, cabelo e das roupas mais ousadas, Medusa nunca deixou de seguir o princípio da castidade de Atena.
Importante destacar que Atena repreendia Medusa, alertando-a quanto ao seu comportamento, como se uma serva não devesse agir com tanta liberdade. Ainda assim, Medusa mantinha sua forma de se vestir e se manter fiel aos princípios da deusa. Na mitologia, Poseidon e Atena disputavam a capital da Grécia, Atenas. Depois de Atena vencer, Poseidon, enfurecido, abusou sexualmente de Medusa no templo da deusa. Embora a fidelidade de Medusa à veneração não tenha sido abalada, ela sofreu repreensão. Ao ouvir sua justificativa – que foi vítima de abuso –, Atena, desconfiada por ela ser atraente e sedutora, a castiga, transformando seu cabelo em cobras, e tornando seu olhar letal.
Após isso, rumores do fato começaram a se espalhar. E não é de se espantar que a maioria das pessoas culpavam Medusa, dizendo que ela tinha se aproveitado da situação. Apesar disso, a fé da jovem não se abalou e ela continuou fiel a seus princípios e indo todos os dias ao templo da deusa.
Ao saber disso, Atena foi tirar satisfação com Medusa e a serva disse que havia sido vítima de um abuso. Se fosse qualquer outra serva sua, Atena havia acreditado. Porém, como era Medusa, a deusa não se convenceu de suas explicações e transformou seu cabelo em cobra, lançando a maldição que qualquer pessoa que olhasse para ela seria transformada em pedra.
Essa é apenas uma das várias histórias de violência sexual da mitologia grega, que buscava contemplar todos os anseios, pensamentos e vontades humanas. Mas, sob um olhar atual, Medusa foi a única a receber punição pelos atos se Poseidon, enquanto seu único “crime” foi ser bonita. Esse episódio evidencia elementos da chamada cultura do estupro: a inversão de culpa, na qual a vítima, Medusa, é punida por ter sido abusada. Esse padrão persiste hoje, com inúmeras vítimas sendo desacreditadas ou culpabilizadas apenas por existirem.
Vemos traços inegáveis da cultura o estupro nessa história. E se você acredita que isso é coisa do passado, há centenas de casos que provam o contrário.
Por exemplo, em junho de 2017, em Tessalônica (Grécia), uma estudante denunciou ter sido assediada por um padre dentro de um ônibus. Vídeos do incidente viralizaram, mas grande parte da opinião pública afirmou que ela teria forjado tudo por atenção. Segundo relatos colhidos pelo Athens Live, a estudante passou por múltiplas situações de assédio dentro do transporte público – inclusive quando pedia ajuda a outro passageiro, que também a molestou. Esse caso ilustra o silêncio coletivo e a deslegitimação que ainda cercam vítimas de violência sexual.
Para um artigo, o Athens Live conversou com algumas mulheres que deram depoimento sobre assédios sofridos. Dentre os mais nojentos, estava o relato de Valia:
“Estrada de ferro elétrica, Atenas. Eu acho que um homem alto está se esfregando contra mim. Não tenho 100% de certeza, então faço o truque de sempre: tente se mexer um pouco para ver se foi apenas acidental. Poucos minutos depois, percebo que, mais uma vez, ele está se esfregando nas minhas costas… Eu sinalizo por ajuda ao homem na minha frente. Em três frações de segundo, o cara de quem pedi ajuda também encontra coragem para me assediar, desta vez de maneira clara e visível. ”
É triste ver que o berço da civilização se encontra nesse estado. Apenas em 2006 foi promulgada a lei para combate a violência doméstica que, entre outras coisas, condenava o estupro marital. Em um relatório feito pelo Equality Now entre o final de 2014 e o final de 2015, chamado “A vergonha do mundo: a epidemia global de estupro”, mostra que na Grécia, assim como em outros países, violentadores sexuais poderiam ser legalmente absolvidos de punição caso a garota fosse considerada “jovem demais” para consentir uma relação sexual.
E as consequências de toda essa violência contra a mulher é uma exclusão involuntária da sociedade. As mulheres são obrigadas a viver com medo, estresse, raiva e acabam sentindo-se imponente perante várias situações cotidianas. A adaptação de rotas de viagem, a escolha de uma roupa ou das palavras que vai falar para poder se proteger acabam excluindo a mulher da esfera pública e ferindo o princípio de uma sociedade democrática.
No final, tudo isso mostra que estamos muito longe de oferecer às mulheres uma condição igual na sociedade. Desde as histórias que ainda contamos, até nossas atitudes diárias — algumas, dignas de um conto de terror da antiguidade grega.
Estátua de Medusa foi instalada em Manhattan, em frente ao Tribunal Criminal do Condado de Nova York
Foto: Michael M. Santiago/Getty Images
Foi instalada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, uma escultura que retrata a personagem, intitulada Medusa com a cabeça de Perseu, do artista argentino Luciano Garbati, mostrando Medusa em pé com a cabeça cortada do herói grego em uma das mãos e uma espada na outra em frente ao tribunal que é conhecido por ser local de julgamento de crimes sexuais.
O local onde foi instalada é muito simbólico: em frente ao prédio do tribunal que condenou o produtor de cinema Harvey Weinstein em 2020 por crimes sexuais contra mulheres. A colocação da obra ali já deveria ter acontecido, mas sofreu atraso por conta da pandemia, conta o artista em seu Instagram. A obra foi selecionada pela City of New York’s
Park Administration ficar durante seis meses no Collect Pond Park, em frente ao Tribunal Criminal do Condado.
“Eu diria que estou honrado pelo fato de que a escultura foi escolhida como um símbolo”, disse o artista ao The New York Times.
📌 Citação sugerida
HIRSCH, Lorena Araujo. Medusa: violência, injustiça e a cultura do estupro. Biblioteca do CECULT/UFRB, 09 mar. 2023. Disponível em: https://www1.ufrb.edu.br/bibliotecacecult/noticias/324-medusa-violencia-injustica-e-a-cultura-do-estupro . Acesso em: ___.
Fontes:
- https://www.artequeacontece.com.br/estatua-polemica-e-colocada-em-frente-a-corte-que-julgou-weinstein/
- https://medium.com/@pedro.leal/medusa-viol%C3%AAncia-injusti%C3%A7a-e-a-cultura-do-estupro
- https://socientifica.com.br/vila-injusticada-conheca-a-verdadeira-historia-da-medusa/
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