Professor Kabengele Munanga é homenageado pela Faculdade de Direito da USP
Kabengele Munanga foi homenageado pela luta contra contra o racismo e em defesa dos direitos humanos, num simpósio que recebeu seu nome, no transcurso de 50 anos da assinatura, pelo Brasil, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
O antropólogo e professor visitante da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Kabengele Munanga, foi homenageado pela luta contra todas as formas de discriminação racial, pela Área de Direitos Humanos da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo(USP). O ato integrou parte da programação do Simpósio de Estudos em homenagem ao professor Kabengele Munanga, ocorrido nos dias 13 e 14 de maio, no auditório Rui Barbosa, da Faculdade de Direito da USP, localizado no Largo São Francisco, no centro de São Paulo.
O evento marcou também os 50 anos da assinatura, pelo Brasil, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
O tributo ao professor destaca a luta no decorrer de sua trajetória de vida e profissional, contra o racismo e em defesa dos direitos humanos. Kabengele Munanga, natural do Congo, é um dos protagonistas no debate nacional em defesa da implantação das cotas e ações afirmativas.
No mesmo evento, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski abordou as políticas de ação afirmativa que foram aprovadas no Supremo - as quais votou a favor na ocasião, em abril de 2012.
Estiveram presente ao simpósio em homenagem a Kabengele Munanga, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Azevedo Marques; o professor dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, Calixto Salomão; os ex-ministros José Gregório (Justiça) atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo; e Celso Lafer (Relações Exteriores); a atual chefe do Centro de Estudos Africanos da USP, Leila Maria Gonçalves Leite Hernandez; o fundador da Universidade Zumbi dos Palmares, sociólogo José Vicente; a professora doutora da Faculdade de Direito da USP e coordenadora dos trabalhos da mesa, Eunice Aparecida de Jesus Prudente, entre outros.
Ao comparar as discriminações contra negros e indígenas no Brasil, Munanga afirmou que uma das peculiaridades desses processo no país é “o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras vítimas e não vítimas.”
Para Munanga, o “racismo à brasileira mata duas vezes”. “Mata fisicamente, como mostram as estatísticas do genocídio da juventude negra em nossas periferias, mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existência do racismo em nossa sociedade”, enfatizou.
Falta no país, na avaliação dele, a consciência sobre a dimensão do problema. O que é, segundo o antropólogo, um obstáculo ao enfrentamento do racismo no país. “Daí a dificuldade de lutar contra uma injustiça social não admitida pela maioria da população, por alguns de seus dirigentes, alguns intelectuais e pela grande imprensa formadora de opinião formadora de opinião sobre os problemas da sociedade”, destacou.
Trajetória
Desde 2017, Munanga é professor visitante da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Há menos de um ano, ele recebeu o 15º Prêmio USP de Direitos Humanos, em cerimônia realizada no dia 29 de junho, na Sala do Conselho Universitário. Ao longo de sua carreira, também foi agraciado com diversos prêmios e títulos.
Em 2002, o professor recebeu a Ordem do Mérito Cultural, pelo Ministério da Cultura; no ano de 2008, ganhou homenagem como Decano em Estudos Antropológicos, do Departamento de Antropologia da FFLCH; recebeu o Troféu Raça Negra 2011, pela Afrobras e pela Faculdade Zumbi dos Palmares.
Em 2012, Munanga foi agraciado com o Prêmio Benedito Galvão, da Ordem dos Advogados do Estado de São Paulo (OAB-SP) e, no mesmo ano, foi homenageado pela Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp). Em 2013, recebeu o Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco, outorgada pelo Ministério das Relações Exteriores. Em setembro de 2016, foi homenageado com o título de cidadania baiana, pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
Antropólogo e professor, Munanga desenvolve pesquisas sobre populações afro-brasileiras desde a década de 1970, quando trabalhou na USP. Seus estudos foram responsáveis por romper a visão eurocêntrica da antropologia, repensar a participação dos negros na história do país e, ainda, consolidar os estudos preparatórios para a Constituição de 1988, no eixo que tange os Diretos Humanos e combate à toda a forma de racismo no Brasil.
Trechos do discurso
A seguir, os principais trechos do discurso de Kabengele Munanga realizado durante o evento em sua homenagem:
O silêncio e o não dito sobre o racismo brasileiro marca o preconceito da educação e da formação da cidadania em toda as direções. Como escreveu Eliane Cavalleiro, esse silêncio começa no lar e se prolonga na educação infantil, desde a escola.Foi com essa consciência, com a consciência dessa lacuna, que organizei o livro Superando o racismo na escola, a pedido do Ministério da Educação, cuja a primeira edição, em 1999, contou com o prefácio do então Ministro da Educação Paulo Renato Souza, e a segunda impressão, em 2001, com o prefácio do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Outras edições certamente vieram no governo do ex-presidente Lula.
Desde então, os convites começaram a chover de várias escolas, para dar palestras e conferências sobre o tema. Me lembro de uma aula marcada com educadores de uma escola pública da periferia de São Paulo, acho que era em Capão Redondo, se não me falha a memória. Me chegou um convite da Unesco, para ir à Paris, na Semana da África, que cai em maio de cada ano, para participar de uma mesa sobre a negritude, por causa de um pequeno livro que escrevi a respeito do Brasil.
A data da minha aula na periferia coincidia, infelizmente, com a data do embarque para Paris. Naquele dia pesou a consciência. Eu preferi declinar o convite da Unesco para honrar meu compromisso com os educadores da escola da periferia de São Paulo.Não conto isso como autopromoção, mas apenas como exemplo de como a consciência pode pesar quando se trata de escolher entre interesses individuais e coletivos
Sem dúvida, todos os racismos são abomináveis e cada um faz as sua vítimas do seu modo. O brasileiro não é o pior, nem o melhor, mas ele tem as suas peculiaridades, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras vítimas e não vítimas.Como disse Ali Wiesel, judeu Nobel da Paz, o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda é pelo silêncio, prática característica do racismos brasileiro que sempre mata duas vezes: mata fisicamente, como mostra as estatísticas sobre a genocídio da juventude negra em nossas periferias; mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existência do racismo em nossa sociedade.
É por isso que eu costumo dizer que o racismos brasileiro é um crime perfeito.
Eu poderia ficar indiferente, me esconder no mundo dos brancos onde tenho amigos, não apenas no Brasil, mas também em outros países ocidentais. Digo com muito orgulho que minhas relações de amizade não têm fronteiras raciais, mas nem por isso vou negar uma realidade crua e chocante que, infelizmente, muitos brasileiros não enxergam pois confundem mitos e realidades.
É claro que as coisas estão mudando, a consciência vem crescendo, como mostrado aqui nas falas do ministro Lewandowski, do ex-ministro José Gregório e professor Celso Lafer.
Num trecho de entrevista em minha homenagem, publicado na revista USP de agosto de 2017, as intelectuais pesquisadoras Silvia Dantas, Lígia Pereira e Maura Véras, me consideram como um intérprete africano no Brasil, porque perceberam que eu tenho um olhar diferente, uma leitura diferente de muitos brasileiros sobre a questão racial no país.Mas esse olhar não é distante, frio, neutro (como diriam alguns, um olhar objetivo), é um olhar subjetivo, engajado, afetivo e apaixonado, um olhar de solidariedade que me acompanha cotidianamente no meu estilo de vida, nas minhas aulas e, sobretudo, nos meus textos.
O mito da democracia brasileira, apesar de já ter sido destruído política e cientificamente, tem uma forma inercial difícil de desmantelar. Se perguntarmos hoje aos norte-americanos, sul-africanos, europeus e brasileiros sobre a existência de preconceitos e discriminação racial em suas respectivas sociedades, teremos respostas diferentes a serem interpretadas de acordo com a época, a história de cada país e sua estrutura de poder.
Os norte-americanos, brancos e negros, poderão dar respostas claras e diretas. Atualmente alguns deles podem até dizer que os preconceitos raciais recuaram porque elegeram um presidente negro, além de apresentar hoje mobilidade social, na qual nota-se uma pequena burguesia.
O sul-africano também não teria dificuldade para confirmar a existência do racismo e de suas práticas em sua sociedade. Alguns podem até dizer que esse fenômeno recuou com a supressão das leis do apartheid e pelo fato de os negros estarem no comando político do país.
Alguns franceses, alemães poderão dizer que em sua sociedade exista apenas a xenofobia em relação aos imigrantes e, não necessariamente, o preconceito racial.
A mesma pergunta feita aos brasileiros pareceria inconveniente, incômoda e até mesmo perturbadora. Muitos, comparativamente aos americanos, sul-africanos, não teriam respostas claras e diretas, suas respostas seriam ambíguas e fugitivas .Para muitos, o Brasil não é um país preconceituoso e racista, sendo as violências sofridas pelos negros e não brancos, em geral, apenas uma questão econômica ou de classe social, que nada tem a ver com os mitos de superioridades e de inferioridade racial.
Nesse sentido, os negros, indígenas e outros, não brancos, são discriminados porque são pobres. Em outros termos, negros, brancos e pobres, negros e brancos da classe média, negros e brancos ricos (não sei quantos negros ricos tem nessa sociedade), não se discriminam entre si, tendo em vista que eles pertencem todos à mesma classe social. Uma bela mentira.
Para algumas pessoas mais esclarecidas, e mais sensíveis ao cotidiano brasileiro, existe sim preconceitos e práticas discriminatórias no Brasil, em relação aos negros, povos indígenas e outros.No caso dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Datafolha, de 1995, que resultou na edição do livro Racismo Cordial, de Cleusa Turra e Gustavo Venturi, publicado pela Ática, seria interessante interrogar-se como o racismo pode ser cordial apenas no Brasil, e não em outro canto do mundo.
Nessa pesquisa, 89% dos brasileiros aceitaram a existência do racismo no país, embora apenas 10% tivesse confessado que conhecem pessoas que discriminam, ou que eles mesmo já teriam sido discriminados.Perguntaram para as mesmas pessoas se elas não se importariam se suas filhas, seus filhos se casassem com uma pessoa negra. As respostas revelaram contradições até entre as pessoas que declararam que não são racistas, na medida em que não viam com bons olhos casamento inter-racial entre pessoas brancas e negras. Elas mostraram preocupação em ter netos negros ou mestiços que sofrerão também preconceitos raciais na sociedade. Reprovaram o casamento inter-racial deixando claro a ambiguidade que permeia a apologia da mestiçagem como símbolo da identidade nacional brasileira.
A dificuldade de combater o racismo brasileiro está justamente nas suas peculiaridades, que o diferenciam de outras formas de manifestação de racismo, conhecida na história como, por exemplo, o regime nazista ou o apartheid na África do Sul, para citar apenas os mais conhecidos. Nesses modelos, o racismo foi explícito, institucionalizado e oficializado pelas leis naqueles países. Praticou-se o racismo do estado.
No Brasil o racismo é implícito. De fato, ele nunca foi oficializado nos princípios da pureza de sangue, da superioridade e da inferioridade racial. Por causa dessa ausência de leis segregacionistas, os brasileiros não se consideram racistas, quando se comparam aos demais países.Os brasileiros se olham nos espelhos sul-africanos, americanos e nazistas e se percebem sem nenhuma mácula, em vez de se olharem em seu próprio espelho. Assim ecoa, dentro de muitos brasileiros, uma voz muito forte que grita ‘não somos racistas! racistas são os outros!’. Essa voz forte e poderosa é o que chamo inércia do mito da democracia racial.
Com informações de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e Carta Maior.