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Outros Tempos, Outras Vontades - Por Ana Rita Santiago

Publicado: Quinta, 04 Junho 2020 18:15 , Última Atualização: Quinta, 04 Junho 2020 18:15 | Acessos: 645

Outros Tempos, Outras Vontades

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele [...]

(Carolina Maria de Jesus)

Motivada pelo projeto editorial Cartas de um outro tempo[1] e pelo poema Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de Camões, escrevo esta missiva aos (às) colegas docentes e técnicos e discentes da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), com quem construí, em algum momento, travessias e pontes acadêmico-científicas e urdi planos e projetos de consecução da relevância social da Universidade Pública. Escrevo também para aquelas pessoas que conheci, nos extramuros da UFRB, em territórios diversos, e, igualmente, desenhamos cruzamentos e possibilidades e figurações de trilhar em prol da vida.

Saúdo a todos, todas e todes com quem, nestes tempos e com vontades,

  • Forjei projetos e possibilidades de uma universidade pública e gratuita capaz de garantir “balbúrdias” em prol da vida.
  • Compartilhei planos e atividades de ensino, extensão, pesquisa, bem como de gestão de qualidade em prol de uma universidade, de excelência, comprometida com as inerências e competências intramuros, mas aberta, comprometida e sensível, do mesmo modo, com o seu entorno e para além dos seus muros.
  • Defendi uma universidade democrática e plural, com políticas afirmativas e de inclusão arrojadas e permanentes. Todos os processos formativos acadêmicos foram por mim cumpridos, dignamente e, na medida do possível, como trabalhadora estudante, sem o apoio de alguma agência de fomento. Assim foi da graduação ao pós-doutoramento: não usufruí de políticas afirmativas tampouco de algum programa de bolsas, embora por elas tenha sido (e sempre fui) ativista e defensora.
  • Realizei ações a favor de uma universidade autorreferenciada pelos territórios identitários, onde a UFRB está circunscrita, tatuada por saberes e culturas locais, mas, outrossim, entrecruzada por interculturalidades.
  • Reconheci os sujeitos universitários, (os) (as) discentes, os servidores (as) docentes e técnicos (as), terceirizados (as) e colaboradores (as) como portadores (as) de culturas, saberes e conhecimentos.
  • Colaborei com a construção e consolidação do Centro de Formação de Professores (CFP), com o intuito de torná-lo referência como um Centro de Ciências da Educação (ainda não alcançado satisfatoriamente) e, em especial, do Curso Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa – Libras – Língua Inglesa.
  • Socializei modos e iniciativas para cumprir a função social “vou aprender a ler para ensinar aos meus camaradas”, como já enunciou o compositor Roberto Mendes.
  • Trilhei em caminhos íngremes e naveguei em águas nem sempre tranquilas e suaves, mas vivenciei com vocês a Ética Ubuntu[2] e a solicitude.

Nestes tempos de UFRB (2008-2020), como ativista, docente e pesquisadora negra, dentre outros traços identitários que travestem o meu corpo e a minha existência, ressignifiquei o desafiante exercício da docência. Além disso, fortaleci, através da mobilização e produção do conhecimento, o compromisso com a vida, com aqueles (as) marcados (as) por subalternidades e com a coletividade.  Reinventei-me, inclusive, criando outros tempos e fluxos da “vontade do saber” e do existir pessoal imbricado com o social. E, concomitantemente, alvitrei maneiras de atravessamentos do desempenho acadêmico, profissional e intelectual, iniciado antes dos tempos da UFRB!

Os passos formativos, que me constituem, a cada tempo, vêm de longe...! Quão importantes são as referências familiares e comunitárias! Relevantes também são as oportunidades de aprendizagem no âmbito dos movimentos sociais negros e de gênero. Por essas organizações e com a vida comunitária, tive (e tenho) acesso a tantos pensamentos, teorias, literaturas, nacionais e internacionais, que precederam a formação acadêmica e colaboraram, eficazmente, no meu desenvolvimento profissional em múltiplos tempos, figurações e instituições. E, indubitavelmente, também é imensurável o quanto a UFRB é e foi importante para os percursos pessoal, acadêmico e profissional. Quantas aprendizagens!

Concluo, neste momento, um ciclo de quase 39 anos de contribuição ao INSS e, desses, mais de 32 anos dedicados à educação em seus vários níveis e territórios (na educação básica, em espaços formais e não formais, e na educação superior). Na UFRB, foram quase 12 anos.

Chegou o tempo da UFRB, ou melhor, findaram o meu tempo e as minhas vontades na UFRB!

Abeiram-se outros tempos e outras veleidades de (re) existir!

Acostam-se outros voos e outros quereres de “tocar em frente”!

Ancoram-se outros projetos de vida, aqui e para além mares e oceanos!

Sigo confiante, com “a minha pele preta”, forjando outros tempos e outras volições!

Sou o que sou, porque somos (Ética Ubuntu). Estamos juntos (as); assim permaneceremos; e poderemos mais!

Abraços afetuosos a todos (as) vocês com quem andei, convivi, “comi do mesmo pão”, sonhei, trabalhei... em tempos e vontades da UFRB, sobretudo, os (as) discentes, egressos (as) e orientandos (as) do Centro de Formação de Professores, em especial, dos Cursos Licenciatura em Pedagogia e Letras – Língua Portuguesa, Libras, Língua Inglesa.

Gratidão a todos, todas e todes!

Olorum Modupè!

Santo Antonio de Jesus, 1o de junho de 2020.

Ana Rita Santiago

 


[1] Este interessante projeto da Revista Pessoa “procura captar a sensibilidade de figuras do campo cultural à nova realidade imposta pela pandemia”, o qual consiste em promover trocas de missivas entre autores (as) em tempos de distanciamento e isolamento social como prevenção do Covid-19.

[2] A ética ubuntu, “o fundamento de intersubjetivação da filosofia africana na busca de valores africanos, refere-se às relações entre as pessoas, abarcando, dentre outros elementos, a consciência ética individual e a consciência ética comunitária”, segundo o filósofo moçambicano Paulo Manuel Gomane Cochole (2019).

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